Por Steffano Silva Nunes
Caetano Veloso iniciou o mês de setembro dando várias entrevistas falando sobre o documentário Narciso em Férias, que traz detalhes sobre os 54 dias de sua prisão, iniciada no dia 27 de dezembro do ano de 1968, talvez o pior ano da ditadura militar que se instalou no Brasil após o golpe de estado iniciado em 1964. Foi levado de sua casa em São Paulo, dentro de um camburão, para uma prisão no Rio de Janeiro.
O documentário de 83 minutos foi escrito e dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil e ganhou repercussão por ter sido selecionado para o festival de cinema de Veneza, sendo exibido no último dia 06, domingo. Os problemas relacionados à pandemia impediram Caetano de viajar e acompanhar o festival. A partir do dia 07, o documentário já ficou disponibilizado ao público.
O cantor, hoje com 78 anos, foi preso à época sob a acusação de “terrorismo cultural” por ter mudado a letra do hino nacional em uma de suas apresentações, o que nos parece inacreditável nos dias atuais, mas vá lá que até se entenda que coisas assim fossem consideradas graves naquela época. No entanto, surge um detalhe importante na história, nunca houve a tal apresentação ou modificação da letra do hino alegada pelo regime militar. Não há registros de testemunhas, confirmação por parte do cantor ou qualquer fato que servisse de substância para a teoria da acusação.
O período da prisão foi assustador mas não bloqueou sua criatividade: “Acordei algumas noites ouvindo gritos de pessoas sendo torturadas. Fiquei apavorado” confessou. Ao ter contato com uma edição da revista Manchete daquele período, que trazia na capa a primeira foto do nosso planeta feita a partir do espaço, se inspirou para compor, anos depois, uma das suas canções mais emblemáticas: Terra. Logo no início da música a letra fala desse episódio: “Quando eu me encontrava preso…”
Apesar de falar sobre si, o documentário de Caetano nos fala muito sobre uma parte da história do nosso país em uma época em que os direitos individuais estavam suspensos. Nos faz imaginar a sensação de entrarem na nossa casa, nos levarem presos sem falar o motivo, sem nenhuma explicação durante todo o período da prisão e somente ao final apresentarem um motivo que se mostrou falso, mas que alimentou muitas desconfianças, levando, inclusive, no caso de Caetano, a ser vigiado, e depois “convidado” a sair do país, se exilando, e vivendo um pesadelo acordado durante o tempo em que ficou fora do país.
Ele relata que assim que saiu da prisão foi forçado a ir para a Bahia e se surpreendeu ao chegar em casa e se ver no espelho pela primeira vez desde o dia da prisão, não se reconhecendo, chegando a se achar um ser estranho, pois em todos os 54 dias de prisão não teve acesso a um espelho. O Narciso estava de férias.
Muitas histórias de horror e violência do período da ditadura são bastante conhecidas, mas ao sabermos dos detalhes da prisão de Caetano Veloso passamos a ter uma noção mais próxima da realidade do que foi esse período de exceção. Somos levados a imaginar que muitas prisões, torturas e assassinatos foram praticados da mesma forma que a prisão do cantor, sem qualquer motivo. Lamentavelmente, o atual presidente do Brasil presta homenagens a esse período obscuro da nossa história. A crítica revisita os anos de chumbo e os relaciona com o momento atual. O jornal italiano Il Manifesto afirmou que os relatos de Caetano Veloso sobre a sua prisão em 1968 transformam-se hoje “na memória de um país devastado pela pandemia, pela política e pela violência”.
Depois de muitos anos, o relato traz a força da denúncia de um período que envergonha o Brasil e o mundo.