Saída de Regina Duarte expõe o abandono da área cultural pelo governo

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Após menos de três meses, Regina Duarte deixa o comando da secretaria sem mostrar serviços relevantes, o que expõe ainda mais o nível de abandono do setor na gestão do presidente Jair Bolsonaro. O ator Mário Frias é o principal cotado para assumir a pasta

A demissão de Regina Duarte é mais um capítulo do drama em que mergulhou a Cultura na gestão Jair Bolsonaro. O desprezo do presidente pelo setor ficou evidente logo após a eleição dele. Uma das primeiras medidas que tomou foi extinguir o Ministério da Cultura e transformá-lo em secretaria, agora sob o guarda-chuva do Turismo. A série de nomeações — muitas delas controversas — e exonerações na pasta agravaram a situação do setor, já às voltas com a falta de investimento. Assim, a Cultura, que já teve como ministros nomes do calibre do diplomata e acadêmico Sergio Paulo Rouanet, do economista e intelectual Celso Furtado e do cantor e compositor Gilberto Gil, segue à deriva, sem solução à vista.

Regina Duarte deixa a Secretaria de Cultura sem conseguir nenhuma medida de socorro ao setor duramente impactado pela pandemia do coronavírus. Após 78 dias no cargo, sucumbiu à pressão da ala ideológica do governo — que a enxerga como alguém muito ligada à esquerda — e às frituras do próprio presidente. Como prêmio de consolação, prometeu à atriz o comando da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. O mais cotado para assumir a secretaria é o ator Mário Frias.
O anúncio da demissão de Regina foi feito ontem, por meio de um vídeo gravado nos jardins do Palácio da Alvorada. Na gravação, Bolsonaro e a atriz minimizaram a exoneração. O presidente justificou que a artista estava com saudades da família e que, com a mudança, ela conseguirá conciliar os dois lados.
“Vim perguntar aqui para o presidente se ele realmente está me fritando, porque eu estou lendo isso em uma imprensa, que eu não acredito mais, mas, de qualquer forma, queria que me dissesse pessoalmente. Está me fritando, presidente?”, questionou Regina, em tom teatral. Bolsonaro, por sua vez, disse que toda semana “tem um ou dois ministros que, segundo a mídia, estão sendo fritados”. “O objetivo é desestabilizar a gente e tentar jogar o governo no chão. Não vão conseguir. Jamais ia fritar você.”
Regina quis deixar transparecer que a mudança foi positiva e almejada por ela, dizendo que a ida para a Cinemateca foi um “presente”. Ela contou com a ajuda da deputada Carla Zambelli (PSL-SP), que a acompanhou mais cedo em reunião com o chefe do Executivo na residência oficial e filmou o comunicado. Segundo a atriz, o convite para a instituição “é um sonho de qualquer pessoa de comunicação, de audiovisual, cinema, teatro”. E completou: “É um presente duplo: é a Cinemateca e estar próxima da minha família, que é uma coisa que eu estou desejando muito”.
“Chateado”
No vídeo, Bolsonaro consolou Regina. “Eu acho que você quer ajudar o Brasil, e o que eu mais quero é o seu bem, pelo seu passado e tudo aquilo que você representa a todos nós. (…) E para a Cinemateca, do lado do seu apartamento, ali em São Paulo, você vai ser feliz e produzir muito mais”, discursou. “Eu fico muito feliz com isso. Chateado, porque você se afasta um pouco do convívio nosso em Brasília.”
Apesar das declarações já era de conhecimento público a insatisfação de Bolsonaro com a gestão da atriz e que queria retirá-la da secretaria. Ela não só falhou em acalmar a classe artística na relação com o governo — uma das suas missões quando assumiu a pasta — como foi bastante criticada pelo setor. O momento mais controverso da artista no governo foi quando, em entrevista à CNN, no início deste mês, cantou a marchinha da ditadura e minimizou as mortes ocorridas naquele regime.
Horas depois do anúncio da demissão, Regina postou mensagem nas redes sociais em que atacou parte do setor cultural. “Continuo acreditando no sonho de achar o caminho do meio. Vou lutar sempre por escapar do ambiente raivoso que acomete parte do setor, um grupo que trabalha cotidianamente, não para construir nada, mas para separar os criadores de arte, impondo o atraso, impedindo a conexão de todos”, escreveu. “Tudo isso é feito em nome de ideologias e ressentimentos partidários que nada têm a ver com o fazer cultural.”
Baixas no governo
Veja os ocupantes do alto escalão que deixaram a gestão Bolsonaro em pouco mais de um mês
Luiz Henrique Mandetta 
Demitido do Ministério da Saúde, em 16 de abril, após longa fritura, porque se recusou a flexibilizar o isolamento social e a assinar protocolo de uso da cloroquina desde os primeiros sintomas da doença.
Sergio Moro 
Pediu exoneração do Ministério da Justiça e Segurança Pública após Bolsonaro demitir o então diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo. O ex-magistrado acusou o presidente de tentar interferir politicamente na corporação.
Nelson Teich 
Médico assim com Mandetta, pediu exoneração do Ministério da Saúde pelos mesmos motivos do antecessor: não pregou a flexibilização do isolamento social e, principalmente, recusou-se a ceder à pressão para liberar uso da cloroquina, inclusive, em pacientes com sintomas leves.
Regina Duarte 
Após um processo de fritura, a atriz foi dispensada da Secretaria de Cultura. A alegação é de que ela sentia falta da família. Bolsonaro já tinha demonstrado insatisfação com a atuação da secretária. Ela, por sua vez, era pressionada a sair pela ala ideológica do governo.
Entenda o caso
 
Desventuras em série
Regina Duarte estava sendo bombardeada pelo governo havia semanas. No último dia 5, o Executivo nomeou, sem consultá-la, o maestro Dante Mantovani para a Fundação Nacional de Artes (Funarte) — cargo do qual ele tinha sido exonerado em 4 de março, data da posse da atriz. No mesmo dia, no entanto, o governo voltou atrás.
Na ocasião da nomeação de Mantovani, um áudio de uma conversa entre Regina e uma assessora, obtido pela revista Crusoé, mostrou que a própria atriz acreditava que estava sendo dispensada pelo presidente Bolsonaro. “Que loucura isso, que loucura. Eu acho que ele está me dispensando”, disse. O maestro, que gerou grande polêmica ao associar rock com sexo, satanismo e aborto, tinha sido indicado pelo antecessor de Regina na secretaria, Roberto Alvim.
Em 28 de abril, quando Regina ainda estava em home office em São Paulo, Bolsonaro lamentou o fato de a secretária estar fisicamente longe e não em Brasília e disse que “ela tem dificuldades”. Quatro dias depois, a atriz voltou a Brasília.
O abalo no “casamento” de Regina com Bolsonaro já dava sinais no dia da posse da atriz. Na ocasião, ela fez questão de lembrar ao presidente sobre a promessa de “carta branca” na pasta. O chefe do Executivo respondeu: “Regina, todos os meus ministros também receberam seus ministérios sob porteira fechada. Obviamente, em alguns momentos, eu exerço poder de veto em alguns nomes”. Ela não conseguiu montar o time que desejava, pois vários dos nomes que indicou foram bloqueados pelo governo.
Por Ingrid Soares
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