Covid-19: ensaio sobre algumas cegueiras

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Em um breve instante, alguém é acometido de uma moléstia. O não enxergar é branco, e várias pessoas vão se infectando em progressão geométrica. Tudo é desconhecido. Há temor e há múltiplas contaminações: uma epidemia se forma. As pessoas doentes são confinadas por ações do Estado e a cegueira vai se alastrando. Ela traz consigo o desvelamento de características atávicas dos humanos. Uma pandemia se forma – o mundo fica cego – e há lutas entre grupos, há egoísmo, há violência, há histeria. No romance de José Saramago só a racionalidade, sem egoísmo, salvará a sociedade. A vida imita a arte, e a narrativa do Ensaio Sobre a Cegueira invade as calçadas do mundo.

A covid-19 gerou uma pandemia de dimensões globais e as consequências não são apenas aquelas previstas na literatura. Nessa parte do mundo observamos que a economia aponta para um colapso e, no mesmo compasso, é o momento em que os caixões se amontoam em Bérgamo podendo, igualmente, se empilhar nas entradas das comunidades faveladas brasileiras.

Paralelamente a essa dolorosa realidade, milhões de brasileiros podem ficar desempregados. A perspectiva negativista já está quantificada em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha apontando que 79% dos entrevistados acredita que a economia do Brasil será muito afetada pela propagação da doença.

Ao medo da morte por conta do Coronavírus, soma-se o temor da perda de emprego, da miséria e da fome. A pesquisa do Datafolha, publicada em 25.3.2020, aponta que mais da metade dos brasileiros (57%) acredita que sua renda diminuirá nos próximos meses. A crise financeira – para a grande maioria – virá atrelada à crise de saúde pública.

O que está no horizonte de quem pensa a sociedade hoje é o somatório de duas crises que encontram paralelo na história. A procuradora do MP de Contas de SP e professora da FGV, Elida Graziane, fez um alerta que provoca reflexão: “estamos vivendo o equivalente histórico da crise sanitária de 1918 e o equivalente econômico da crise de 1929 e essa decisão de deixar cortar vínculos empregatícios vai acelerar a crise, explodindo a convulsão social”.

O RIO É UM VASTO HOSPITAL – A invasão da Influenza hespanhola – A desídia criminosa do governo.

Com estas palavras, o jornal GAZETA DE NOTÍCIAS, no Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1918 denunciava a ineficácia do poder público, a dificuldade social de reduzir o contágio e evitar mortes. 66% da população carioca contaminou-se. Cerca de 2% da população veio a óbito.

De outra banda, conforme esta análise, estamos também vivendo outra grave crise, de natureza outra, que agride empregos, estabilidade econômica e gera desabastecimento e miséria. O paralelo óbvio é o crash de 1929.

A Grande Depressão ou Recessão de 29 tem razões distintas da crise que bate à porta no rastro do coronavírus, uma vez que a origem daquela foi a grande especulação sem correspondente produtivo, e a essa que se avizinha é fruto da ausência de circulação de riqueza, em função das pessoas estarem confinadas. De todo modo, a tendência é de grande desemprego tal e qual em 1929, quando a taxa americana chegou a 27%, com queda de 70% das importações e 50% das exportações daquele país. Com a falência de milhares de empresas e bancos, a produção industrial do ocidente caiu em 1/3 e o salário médio dos que permaneceram empregados chegou a ser reduzido em 50%.

Se é correto que estamos começando a viver duas ondas de crises – na saúde pública e na economia – será necessário analisar experiências históricas, como também técnicas de enfrentamento utilizadas em outros países que padecem dos mesmos fenômenos.

Vamos lembrar que ¼ da população do mundo está em confinamento. Se outras nações estão passando pelo mesmo desalento, deve-se cotejar os fatos, consequências e medidas implementadas e avaliá-las. Seria uma espécie de distinguishing da covid-19.

A questão é: a economia mundial será ou já foi afetada, inexoravelmente. A pandemia já impactou. Naturalmente há consequências nas relações trabalhistas e também nas pequenas e médias empresas que empregam milhões de trabalhadores.

Que solução dar?

Como afirma Mailson da Nóbrega, é preciso primeiro salvar vidas, depois aumentar a circulação de valores, colocando dinheiro nas mãos dos mais vulneráveis, para, em terceiro lugar, estabelecer políticas de proteção das pequenas empresas. O mesmo raciocínio é utilizado por Armínio Fraga, que também vê a necessidade de velozmente se aplicar recursos públicos criando renda para os mais vulneráveis. Linhas de crédito mais flexíveis é a solução do economista para a salvaguarda dos direitos de todos.

Como a causa da crise é a pandemia, é preciso preservar as pequenas e médias empresas em funcionamento, mas observando que a prioridade é salvar vidas. É o que pensa Henrique Meirelles. Já para Mendonça de Barros, é preciso aumentar linhas de crédito, suspender pagamento de tributos e injetar dinheiro na economia. Também foi sugerido que parte da folha fosse paga pelo Estado, com o compromisso de que a empresa mantenha o emprego, copiando o modelo alemão.

Isso implica a necessidade de agir sempre com razoabilidade a fim de ser preservada a função social e sobrevivência da empresa que, em última análise, visa proteger os empregos e a economia, mas mantendo o foco, mais que tudo, na injeção de dinheiro público para a sustentação do equilíbrio social e econômico, e salvar vidas!

Considerando todos esses dados e essas posições de economistas das mais variadas escolas econômicas, é imperioso voltar o olhar para o governo brasileiro e entender, efetivamente, quais foram as medidas implementadas até o momento.

Podemos observar:

(i)            prorrogação do prazo para pagamento dos tributos federais no Simples Nacional – aprovado em 18 de março de 2020, através da Resolução CGSN nº 152/2020 do o Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN);

(ii)           até o dia 30 de setembro de 2020, a alíquota do Imposto de Importação de mercadorias médico hospitalares necessárias ao combate da pandemia será de 0%. Foi também determinado aos órgãos aduaneiros de fiscalização, controle e licenciamento de importações que adotem tratamento prioritário para a liberação de mercadorias médico-hospitalares;

(iii)         Renegociação extraordinária, até 25 de março de 2020, de débitos inscritos em dívida ativa da União (PGFN) – A Portaria nº 7.820/2020, estabeleceu condições especiais para regularização de créditos tributários inscritos em dívida ativa da União, ajuizados ou não. A mesma Portaria determina a suspensão de medidas de cobrança administrativa por parte da PGFN;

A última medida implementada pela União, com o objetivo de trazer resposta ao empresariado brasileiro, foi a medida provisória 927/2020. Polêmica, em certa medida com razão, parece ter a MP o objetivo de preservar o máximo de emprego e de postos de trabalho existentes no Brasil.

Em seu artigo 3º eis o rol de alternativas:

I – o teletrabalho;
II – a antecipação de férias individuais;
III – a concessão de férias coletivas;
IV – o aproveitamento e a antecipação de feriados;
V – o banco de horas;
VI – a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;
VII – o direcionamento do trabalhador para qualificação;
VIII – o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.

O item mais combatido da MP 927, o inciso VII, estabelecia a suspensão do contrato de trabalho pelo prazo de 04 (quatro) meses sem qualquer contrapartida financeira para o empregado, prevendo como única obrigação do empregador o fornecimento de curso ou programa de qualificação profissional[1].

O citado inciso e o artigo 18 da MP 927/20 já não estão mais em vigor vez que suspenso, quase imediatamente, pelo Governo. Logo, o impacto financeiro mais imediato trazido foi o diferimento no recolhimento do FGTS relativo às competências de março, abril e maio de 2020, em que o recolhimento poderá ser efetuado em até 06 parcelas mensais, a partir de julho/2020.

Tímida, extremamente tímida, a atuação do Estado Brasileiro até agora considerando que a ONU encaminhou ao Brasil, e aos demais países do G-20, carta alertando para o risco de uma pandemia a classificando como “apocalíptica”[2].

O presidente dos EUA, Donald Trump – em quem o presidente Bolsonaro rotineiramente se espelha – juntamente com senadores dos partidos Republicano e Democrata chegaram na madrugada desta quarta-feira (25) a um acordo sobre um plano federal de estímulos para injetar US$ 2 trilhões de dólares para aliviar os impactos do coronavírus na economia do país.

Trata-se do maior programa de transferência de renda da história. O valor equivale a aproximadamente R$ 10,2 trilhões de reais, o que representa um montante maior do que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em valores correntes, que em 2019 totalizou R$ 7,3 trilhões.

Entre outras medidas, o plano americano prevê remuneração direta à maioria dos americanos, ampliação de benefícios de seguro-desemprego, dinheiro para estados e um programa para pequenas empresas poderem remunerar funcionários que precisam ficar em casa, para conter o contágio do coronavírus no país.

Impulsionado pela declaração do presidente americano, segundo a qual os EUA deveriam retomar os postos de trabalho muito em breve, o presidente Bolsonaro reverberou, na noite do dia 24/03 – em pronunciamento deslocado da posição dos governadores e das orientações da OMS – que os brasileiros deveriam, imediatamente, voltar ao trabalho e ignorar o que voltou a chamar, temerosa e irresponsavelmente, de uma “gripezinha”.

E este pronunciamento ocorre no exato momento em que a Itália já usa drones com som para perseguir nas ruas quem desobedece ao confinamento, paralelamente à aplicação de multas.

É caso de dizer: Os brasileiros jamais fugiram a luta, “capitão”! O que o povo quer e precisa saber é qual será a atuação do Estado brasileiro. Qual é o “plano” para a economia do Brasil?

Se a exigência for apenas a de que um filho seu não fuja à luta; que os soldados saiam à paisana para o campo de batalha, há oportuna e imperiosa necessidade de fazer referência e louvar o brilhante artigo publicado pelo ministro do STJ Rogério Schietti intitulado “A Futura Responsabilização Pelas Mortes Da Pandemia”[3] que, ao final, encerra uma assertiva clara ou uma premonição “Por sua vez, será inevitável cobrar, com o rigor das leis, nacionais ou internacionais, a conta de quem se tenha colocado como um consciente entrave para a minoração dos efeitos dolorosos de que todos iremos padecer”.

O exercício do múnus público implica, também, em responsabilidades daí inerentes.

Na escolha das nossas opções, faz-se mister observar o que vem acontecendo em muitos outros países. A Itália experimentou o mesmo movimento que o Brasil agora deseja fazer.

Há um mês, ainda em fevereiro, quando as estatísticas italianas registravam 17 mortos, o governo italiano decidiu mudar a estratégia de combate à covid-19. À época, o país contava com 650 infectados, em sua maioria, nas regiões da Lombardia e Veneto. O que fez o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte? Revogou o isolamento social, principalmente no que diz respeito à frequência nas escolas e reuniões festivas, ao argumento que esta proibição “contribuía para gerar o caos”.

Na Lombardia, os bares que haviam sido fechados por precaução foram reabertos dois dias depois. Quando as mortes começaram a subir exponencialmente, houve reversão da estratégia decretando-se quarentena obrigatória.

Era tarde demais!

Na semana passada, com imensa tristeza, a Itália percebeu-se outra vez no epicentro da pandemia na Europa, e hoje conta com mais de 7.500 mortes, superando o numero de óbitos na China.

Apenas nos últimos três dias, depois de duas semanas da quarentena obrigatória iniciada em 9 de março, o número de novos casos da doença começou a crescer a um ritmo menor, abaixo de 10% de novos casos por dia. Em 24 de março de 2020, exatamente no dia em que o Governo brasileiro apontava para o recuo das medidas de isolamento social, o primeiro-ministro italiano pediu que todos os países fossem rigorosos na luta contra a covid-19.

Todos os dados apontam para a seriedade do enfrentamento no campo da saúde. Destaca-se, por exemplo, a quantidade de leitos hospitalares ao redor do mundo. A média do planeta é 3,2 leitos para cada 1.000 habitantes e o Brasil está abaixo dela, de acordo com a OMS[4].

A Itália tem 60% mais leitos de hospital para cada mil habitantes do que o Brasil, e mesmo assim sofre, sofre muito com a epidemia do coronavírus. O número do Brasil, vale dizer, diminuiu 12,6% em dez anos. Caiu de 2,23, em 2010, para 1,95.

A omissão no caso dessa pandemia tem o custo de uma ou milhares de vidas. Vidas têm valor inestimável.

Nesse momento de crise, mais uma vez o Congresso Brasileiro toma para si a responsabilidade. Já se tem notícia de uma PEC, de autoria do Deputado Ricardo Izar (Progressista/SP) que “Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispondo sobre medidas emergenciais de financiamento do combate à pandemia internacional do coronavírus”, prevendo redução, temporária, de 20% (vinte por cento) de jornada de trabalho dos ocupantes de cargos eletivos, dos membros do Ministério Público e dos ocupantes de cargos comissionados de todos os Poderes em 20%, com adequação proporcional dos subsídios e vencimentos à nova carga horária e de um projeto de lei, de autoria do Deputado Carlos Sampaio (PSDB/SP), no mesmo caminho.

De fato, se há perspectiva de violenta crise que se espraia dentre os trabalhadores do setor privado, nada mais natural do que a repartição do necessário ônus entre todos.

A OCDE, por meio de seu Secretário-Geral, Angel Gurría, assinala para a necessidade de implementação de medidas de recuperação mundial e convoca países a atuarem de forma coordenada em uma espécie de Plano Marshall.

Agora é a hora da responsabilidade!

Não amanhã!

Não em uma semana.

Ontem é tarde demais.

A Cegueira deliberada não pode ser executada, porque a vida não é um ensaio!

Uma vida é vida em excesso, Capitão!

[1] Deve-se ressaltar que a legislação trabalhista já previa o lay off que é um recurso de suspensão de contrato de trabalho. No entanto, o que diferencia os institutos é que a MP não previa o pagamento de bolsa qualificação pelo FAT (que paga um valor médio dos últimos 3 salários recebidos pelo trabalhador e nenhuma parcela pode ser inferior ao salário mínimo, hoje de R$ 1.045,00).

Fonte: Estadão.

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