Por uma nova versão da história

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O intelectual Domício Proença, membro da Academia Brasileira de Letras – ABL, selecionou a narrativa da gripe espanhola, presente na obra Chão de Ferro, do escritor mineiro Pedro Nava, para refletir, no Simpósio A Pandemia e A Literatura, na ANM, sobre o que se repete nos dias pandêmicos do decorrer dos tempos, incluindo as questões da existência. E o fez talvez porque ‘um memorialista seja o mais exato de todos, ao descrever suas histórias, pois somos não apenas os instantes materiais onde a história se desenrola, mas a imaginação que traz os sonhos e as expectativas que jamais vieram à luz, mas pareciam ter ido de nós total e inteiramente’.

O acadêmico iniciou sua palestra, considerando ser a leitura de Chão de Ferro um profundo mergulho, enquanto descreve ‘a sensação de estar envolto em palavras que passam diante dos olhos como se fossem carpas multicoloridas que nos despertam uma vontade quase irresistível de tocar, suavemente, para sentir as cores que se refratam com a luz’. Compartilhou a afinidade com as impressões de Raquel de Queiroz sobre o livro de Nava: ‘mexe com a alma, com o coração, com a inteligência; mistura a materialidade do título com ternura e agudeza; metaforiza que do chão de pedra somos levados a águas profundas, tanto quanto Vinicius de Moraes poetiza em seu célebre poema’ que, “Para viver um grande amor, direito/ Não basta apenas ser um bom sujeito/ É preciso também ter muito peito/ Peito de remador”.

Foi assim que me encontrei diante das palavras de Proença sobre Chão de Ferro de Pedro Nava, obra que relembra, de maneira multiforme, a vida de Nava, no Rio de Janeiro, e sua ‘folha da juventude’, no Colégio Pedro II: imaginando o que, desta realidade que vivemos, ficará guardado na memória do mundo. Porque, para Domício, o memorialista é historiador e ficcionista. Diferente de um escritor de biografias, na exatidão dos fatos, o memorialista é, no dizer do próprio Nava, ‘um tipo anfíbio que casa história e ficção’, tornando difícil e fascinante ao leitor saber ‘o quanto há, na obra, do mundo vivido e do mundo criado’. Desse modo, Proença pensou a Covid-19, ao eleger o relato de Nava sobre o que ocorreu em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, como retorno das mesmas situações caóticas. E comparou: ‘no princípio, os moradores fizeram pouco caso, a despeito de a gripe espanhola grassar na Europa e na Ásia, assim como agora tem acontecido. Os infectados pareciam distantes. O navio La Plata era um celeiro ignorado e os contaminados começaram a disseminar o mal nas cidades’.

Considerou, ainda, ‘impressionantes as coincidências que irmanam a reação governamental e popular do contexto da gripe espanhola, em 1918, e a do coronavírus, em 2020: jogos suspensos, proibição de circulação, pânico, pouco conhecimento das consequências da praga; a agressão e a variabilidade da sintomatologia; o fantasma da fome; a inexistência de medicamento eficaz; as questões da economia e o desafio angustiante do conhecimento’. Remédios incertos. Todos se arvoravam farmacêuticos e médicos, no quesito de recomendação e prescrição’.

‘Os profissionais de saúde se revelaram logo esgotados; as funerárias não davam conta de tanta demanda e os campos santos logo se mostraram lotados. Como em toda crise, também havia os que lucravam com a desgraça alheia. Milhares de infectados, morte em todo canto, famílias destroçadas’. E ainda o fake news. Jornais impressos alternando realidade e “ficção” e as autoridades a cogitarem repressão e censura. Era ‘o reinado da hipótese’, resume Proença, numa expressão que se encaixa perfeitamente à nossa realidade.

Eu percebi, naquela tarde, que a memória coletiva, presente na literatura, torna a leitura ainda mais pulsante, por tudo o que se revive. ‘Isso difere de saudosismo, que é o sentimento que tenta nos arrastar ao passado e nos enclausurar. É pura magia, como quem abre uma das portas de Alice ou de As Crônicas de Nárnia’, afirmou Domício Proença.

Fiquei pensando o quanto o perfil cíclico das pestes exige novas respostas às crises do mundo. Para isso, a ciência não é uma opção: é um dever para conter o eterno retorno das pestes e assegurar uma nova versão da história, sem as visíveis repetições, cujas lições a humanidade parece não aprender.

Por Natalino Salgado Filho

Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, de Letras do MA e da AMM

 

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